Descubra a história do veleiro do Tio Spinelli, que levou 11 anos para ser construído, em meio a uma história de amor e parceria
Por: Mariana Schittini
Em 1994, aos 50 anos de idade, José Spinelli tomou a decisão que mudaria sua vida: deixar para trás sua estabelecida carreira de engenheiro mecânico em São Paulo e viver em Ubatuba, no litoral paulista, para se dedicar à construção do barco com o qual havia sonhado por muito tempo em sua vida. Ao lado de sua esposa, Maria Cecília, Tio Spinelli, como é conhecido carinhosamente o hoje instrutor de navegação, colocou em prática a ideia de morar perto do mar para poder viver a vida navegando.
Depois de 11 anos de gestação, nasceu o Soneca. Com 33 pés (cerca de 10 metros) de comprimento e quase 3,5 metros de largura, o veleiro é muito mais do que uma embarcação de tamanho tradicional, que poderia ser comparada com um apartamento de 28 m2. O Soneca, construído do zero por seu capitão, é a realização de um sonho sonhado a dois. “Eu conheci a Cecília no dia 31 de dezembro de 1987 em uma festa de réveillon. Naquele dia, nós dançamos nossa primeira música e nunca mais nos separamos. Depois de deixarmos juntos a festa e passarmos o resto da noite dançando de bar em bar, terminamos indo ao Reggae Night, uma casa noturna que ficava à beira da represa de Guarapiranga. Lá, eu tinha um barco a motor, uma traineira, que eu usava para mergulhar. Eu falei para ela que estava em dúvida se deveria vender ou reformar o barco e, apenas 8 horas depois de a gente se conhecer, ela me disse: ‘Eu adoraria planejar um negócio desses e viver no mar’. Naquele momento, eu já sabia que iria me casar com aquela mulher”, conta Spinelli.
Entre o surgimento da ideia da construção do barco e sua primeira ida ao mar, Spinelli e Cecília superaram, juntos, muitos obstáculos e persistiram bastante para conseguir levar adiante a empreitada. Nem mesmo uma enchente, que levou embora toda a madeira e resina que seria usada para a construção do barco, e o fez perder tudo em 1995, apenas 6 meses depois do início da fabricação do Soneca, os fez desistir do sonho.
“O projeto era muito maior que o nosso bolso. A gente pensou em parar de trabalhar, largar tudo e viver da aposentadoria da Cecília, que é ex-gerente de banco, para eu poder trabalhar ‘full time’ no Soneca. Só que trabalhar ‘full time’, exigia material ‘full time’ e significava dinheiro ‘full time’. Como eu não tinha dinheiro o projeto se arrastava, parava por falta de resina, parava por falta de madeira. Então eu comecei a trabalhar como instrutor de mergulho. Eu trabalhava no mergulho às quintas, sextas, sábados e domingos, e sobravam as segundas, terças e quartas para o barco. Ou tinha dinheiro, ou tinha tempo. Esse era o problema”, relembra ele.
Apesar dos perrengues e do longo tempo de construção, Spinelli jamais desistiu de concretizar sua intenção de fabricar um veleiro com suas próprias mãos. Quando o realizou, deu ao barco um nome inspirado na parceira de todas as situações. “Quando o barco ficou pronto, a gente começou a fazer uma lista de nomes que tivessem alguma coisa a ver conosco. Eu queria um nome simples, com sílabas simples e foneticamente separadas, que não tivesse pronúncia diferente em outras línguas. Aí, nessa mesma época, eu fiz uma viagem com a Cecília em outro barco e ela fazia uma soneca e uma refeição, uma refeição e uma soneca, uma soneca e uma refeição. Para encurtar, de 36 horas de viagem, ela dormiu 29. Foi na época do Plano Collor. Ela era gerente de banco, e ficou 4 a 5 dias dentro da agência, sem dormir ou dormindo no chão, comendo pão de queijo. Ela estava realmente muito cansada. Mas o nome Soneca caiu tão bem que quando a gente pôs na lista ele acendeu, sobressaiu, e nenhum outro entrou na brincadeira. Foi uma homenagem a ela”, revela o capitão.
Em 29 de maio de 2006, ficou pronto o Soneca, barco com projeto Roberto de Mesquita Barros (o Cabinho), fabricado com a ajuda de muitos profissionais a quem Spinelli faz questão de exaltar: “Eu tenho orgulho de dizer que eu fiz o Soneca sozinho, mas é uma grande mentira. Você não consegue fazer absolutamente sozinho, entende? Eu participei de todas as fases, coloquei a mão na massa em todas as fases, mas contei com ajuda de muita gente em cada uma delas e aprendi com cada uma das pessoas que participaram dessa empreitada”.
Seguro e resistente, o Soneca é um barco projetado para navegar 100 milhas por dia, com conforto e tranquilidade, mas faz uma média diária de 120 a 125 milhas. Feito em mogno e recoberto de fibra, o veleiro tem uma cama de casal triangular na proa, uma sala para refeições com uma mesinha dobrável e dois bancos laterais que se transformam em duas camas de solteiro quando a mesa está fechada no meio, banheiro, uma cozinha equipada com fogão e duas geladeiras e uma segunda cama de casal à direita da mesa de navegação. A embarcação, típica de cruzeiro, já atravessou o Atlântico quatro vezes com Spinelli em duas viagens de ida e volta para a África, e ainda foi uma vez para a Argentina.
“A primeira viagem levou 38 dias até a África. Eu fui com uma tripulação com uma razoável experiência, mas tivemos alguns probleminhas de relacionamento no caminho e quando chegamos lá. Foi aí que eu conheci o Fabio Seixas (@fabioseixas) e o Tomás Bueno. Quando eles embarcaram para voltar comigo não sabiam nem onde era o mastro do barco.”
“Apesar de muitas pessoas valorizarem e dramatizarem demais esse tipo de viagem, eu acho que é algo possível para qualquer pessoa. É muito mais fácil e tranquilo do que parece, desde que você tenha o barco na mão e saiba como fazer. O problema maior é mesmo o tempo que você passa no mar. Você tem que se preocupar muito com o tédio. Você não tem muito o que fazer com o barco regulado. É aí que aparece o espaço para convivência, que foi exatamente onde eu tive problemas na ida. E a volta foi a viagem dos sonhos. Eu tinha, na época, 69 anos, o Fábio tinha 35 e o Thomás 23, completados a bordo. Três gerações completamente diferentes e nós nos entendemos de uma maneira fantástica. Foi uma viagem muito prazerosa e enriquecedora para todos nós”, conta Spinelli.
Pausa para o Soneca
No começo do ano, Soneca precisou ficar parado por 34 dias, para passar por uma reforma, após ter o casco rachado em um acidente com uma pedra, e Spinelli pode confirmar o que já sabia: “Depois que o retiramos da água, eu percebi o quanto o Soneca era mesmo forte. Pelo barulho e pelo que aconteceu eu achei que seria um estrago muito grande, mas me enganei. O estrago não foi tão grande.”
“O conserto foi problemático, porque para consertar um barco e ele continuar confiável é preciso desmontar um monte de coisas. Mas eu consegui refazer, consegui arrumar. Só para você ter ideia, para a gente conseguir tirá-lo da água levamos 13 dias com marreta, talhadeira e formão tentando quebrar a parte estragada. Foi muito difícil quebrar o Soneca. Depois nós o refizemos no mesmo processo construtivo inicial. E ele voltou para a água em 29 de maio, na data do nascimento dele”.
Questionado sobre a importância do Soneca em sua vida, Spinelli revela que o veleiro é muito mais do que seu meio de sustento, usado para dar aulas de navegação com barco a vela, e que a concretização do objetivo de viver viajando pelo mar: “Primeiro de tudo, o Soneca é uma demonstração para os meus filhos de que o sonho pode ser alcançado. Determinação e foco são coisas que vou deixar de legado para eles por meio da realização desse sonho. E ele também é o símbolo da minha união com a Cecília. Ela foi parceira, sócia, pagou a metade e fez muitos sacrifícios. Ela é a retaguarda que ninguém vê. Todo mundo vê o Soneca e o Tio Spinelli, mas eu não seria nada se não tivesse a Cecília do meu lado”,
A história de luta e determinação, que pode ser confundida por muitos com teimosia, inspira quem, como Spinelli, tem a vontade de mudar de vida e tem dúvidas. Hoje, totalmente realizado com a sua vida, mesmo depois de trocar o antigo padrão por qualidade de vida, o navegador nos dá um exemplo de coragem com sua história de vida.
“Eu levei 11 anos para tomar essa decisão, e hoje eu entendo que eu perdi 11 anos. É preciso ter coragem. Essa é a primeira coisa! Em São Paulo, ganhava 3 ou 4 vezes mais do que ganho aqui, mas eu não sabia o que era almoço. Aqui eu tenho 2 horas de almoço, tenho folga e, o mais importante, eu posso realizar meu sonho. É preciso colocar na balança o que é importante para você. Essa pandemia mostrou para muita gente o que é importante. Eu mudei para cá, eu tinha 51 anos, é a hora que o cara fala ‘estou velho’. Isso é o que mata. Eu tenho muitos alunos que me perguntam se com 50 anos não é tarde para velejar. Não, não é. Tenha paciência, levanta e vai à luta. Idade não é limitante”, finaliza ele, falando com a paixão comum aos que têm certeza que fizeram a escolha certa na vida.