O mar sempre foi protagonista na vida de Tamara Klink. Mesmo quando fazia o papel de vilão, já que a afastava do pai, Amyr Klink, ele exercia sobre ela um inexplicável fascínio: “As minhas primeiras carências e frustrações, por não ter o meu pai presente em ocasiões especiais, poderiam ter me feito detestar o mar. Mas eu comecei a me perguntar o que o levava a fazer aquilo, o que levava a minha mãe a encorajá-lo daquela maneira”, conta a navegadora. “Me questionava sobre o que poderia ser tão forte a ponto de fazer meu pai querer ficar longe de nós, do conforto e da segurança em terra. Era como um enigma e eu comecei a ficar intrigada e curiosa, querendo saber o que era aquele elemento”, explica.
Por meio das muitas histórias contadas pelo pai durante as refeições em família, Tamara, que vivia na capital paulista, começou a fantasiar sobre o oceano e os horizontes que ele ofereceria. “Quando meu pai voltava, parecia que tudo mudava em casa. Era como se chegasse uma nova estação. As pessoas ficavam mais felizes em casa. Ele contava as histórias na mesa do café da manhã, do almoço, do jantar, e antes de eu e minha irmã gêmea irmos dormir. Também lembro de o mar ser tema das minhas festas de aniversário. Então, de certa maneira, mesmo antes de eu entender o que era o mar, ele existia como uma fantasia no meu imaginário, como um conto de fadas”, relembra.
Quem vê o sobrenome Klink pode achar que ter um ídolo da navegação como pai pode ter facilitado o caminho de Tamara, que fez sua primeira viagem de barco sozinha no final de 2020, aos 23 anos. Mas a realidade é bem diferente: “Meu pai era conhecido e admirado e isso não facilitava na humanização dele para mim. Por mais que ele estivesse ali, teoricamente acessível, na prática era diferente do que as pessoas imaginavam.”, conta. Ele não é muito pedagogo e sempre me deixou muito claro que se eu quisesse aprender alguma coisa, eu deveria procurar livros e pesquisar. Por muitas vezes ele foi muito duro comigo. Quando eu achava que estava sabendo das coisas, que estava aprendendo rápido, ele puxava meus pés para o chão e falava: ‘você não sabe nada’”, relembra Tamara.
“A primeira vez que eu pedi um barco emprestado para ele, ele me respondeu: ‘Tamara, é claro que não’. Eu já tinha começado a encontrar as minhas referências femininas, e tinha lido a história de uma menina, jovem, holandesa, que havia feito uma volta ao mundo sozinha graças a ajuda do pai. Então eu me questionei bastante sobre porque meu pai não queria me ajudar. Foi duro para mim. Eu demorei para criar uma certa casca e entender que esse era o método dele, que era o melhor que ele poderia fazer do jeito dele”, revela.
Mas desistir não era uma opção e Tamara fez do limão uma limonada. Transformou a negativa do pai em combustível para buscar seus próprios recursos. A velejadora relembra que sem a ajuda do pai, precisou fazer um caminho um pouco maior do que tinha previsto. “Ele me mostrou que a possibilidade de navegar existia e acaba por aí. Mas ter que ir sozinha atrás de todo o resto me tornou muito independente. Eu precisei construir minhas próprias estruturas emocionais, aprender do meu jeito, buscar muitas referências para enriquecer a minha caixa de ferramentas”, afirma.
“Meu pai realmente sabe de muitas coisas, mas quando eu estiver no mar ele não vai estar lá para me dar as respostas”
“Quando ele disse que não ia me dar um barco, eu foquei em descobrir quais as vantagens que eu poderia tirar daquilo. E foram muitas. O fato de ele dizer ‘não vou te emprestar’, de certa maneira, me deixou livre para eu construir meu próprio caminho. Quando ele disse que não ia me ensinar, também me deu a liberdade e autonomia de buscar as minhas próprias respostas. Hoje eu vejo que a gente pode conversar com referências diferentes, que se enriquecem e se complementam. Isso é muito positivo para mim, eu não me vejo numa cópia dele, acho que nem poderia ser, e ganhei confiança traçando meu próprio caminho”, diz Tamara.
Apesar de carregar a navegação em seu DNA, Tamara não acha possível a comparação com a trajetória do pai: “Nós não nascemos na mesma época, nem no mesmo contexto. Apesar de sermos da mesma família, nós temos histórias completamente diferentes. Meu pai fez suas primeiras descobertas sobre o mar relativamente tarde, com vinte e oito anos, quando ele atravessou o Atlântico, e não tinha histórico de feitos parecidos na família. Meus avós não tinham nenhuma relação com a navegação. Eu já cresci com essa fantasia povoando o meu imaginário, em uma época em que encontramos informações na internet com muita facilidade. Sou de uma geração que tem muita autonomia. Além disso, eu sou mulher e ele é homem, então eu já cresci com uma falsa crença de que eu era menos capaz. São contextos completamente diferentes”, finaliza.
“Eu sempre senti que navegar sozinha era a única maneira que eu teria de descobrir se eu era capaz de ocupar esse espaço com o qual eu sonhei quando pequena”
Ser mulher em um universo onde a maioria das referências é masculina fez com que Tamara precisasse buscar modelos que iam além do que o que ela tinha em casa. “Eu sempre tive a impressão de que, por melhor que eu fosse, eu nunca seria tão boa quanto os homens que eu via. Isso gera na gente uma sensação de insegurança constante, uma dúvida sobre nós mesmas que não precisaríamos ter. Demorei muito tempo para dar conta disso. Demorei pra encontrar os primeiros livros com histórias contadas por mulheres, em que elas eram navegadoras e não apenas entravam em viagens como passageiras. Essas referências foram muito importantes para eu entender que era possível fazer isso sendo mulher”, explica.
As primeiras experiências de Tamara em um barco aconteceram na represa de Guarapiranga, em São Paulo, onde sua mãe a levava para velejar com 11 anos: “Eu detestava porque aquilo não tinha nada a ver com as histórias que eu estava lendo, não tinha nada a ver com filmes, não tinha nada a ver com as histórias do meu pai. Eu queria ver bichos, eu queria estar longe de terra, e na represa eu via a terra em volta o tempo todo”.
Mais tarde, Tamara prestou vestibular para o curso de arquitetura e entrou na USP, onde começou a frequentar o Clube de Remo e a Escola de Engenharia Naval. “Durante a faculdade de arquitetura no Brasil eu já estava trabalhando com portos, mas não era exatamente o que eu queria. Aí meus professores me indicaram uma faculdade de Arquitetura Naval na França e eu achei perfeito. Meu francês é muito básico, mas eu ignorei a questão da língua insuficiente, não coloquei isso como limitação, e consegui a vaga”.
Longe do Brasil, o sobrenome Klink tinha outro peso, o que fez com que Tamara perdesse o receio de se arriscar e passasse a se oferecer para navegar com pessoas mais experientes do que ela. “Foi a primeira vez na vida que eu me vi em contexto onde eu era só a Tamara, ‘aquela brasileira que não fala muito bem, mas fala bastante’. Klink era só um nome engraçado que não dizia nada para ninguém. Aí eu pensei: ‘uau, então aqui eu posso errar, posso fazer pergunta boba e ninguém vai achar que eu sei mais do que sei de fato’. Isso me permitiu errar muito sem ter vergonha ou medo, sem sentir nenhum peso por errar. Eu pensava: ‘quanto mais eu errar agora, mais eu vou aprender e menos eu vou errar depois’”
“Fui me lançando em situações que talvez eu não ousasse no Brasil. Comecei a ir nos portos e nas marinas pedir para navegar. Me ofereci para ajudar, para navegar com as pessoas e foi quando eu acho que eu mais progredi. Eu errei bastante e aprendi bastante”, conta.
Mais segura e experiente, Tamara começou finalmente a planejar seu primeiro projeto de travessia do Atlântico em solitário e a buscar apoio e patrocínio para conseguir realizar a empreitada. Com a chegada da pandemia, os planos foram por água abaixo e ela precisou começar a pensar em outra maneira de navegar sozinha, enquanto esperava que seu plano de atravessar o oceano se tornasse possível novamente.”Durante a pandemia, começou a não fazer tanto sentido assim construir um barco novo em um momento em que a gente está precisando focar no essencial, fazer o máximo com o mínimo. Eu não queria usar recursos novos do planeta para construir algo novo”, explica.
“Quando eu comecei a pensar sobre como eu poderia arrumar uma oportunidade de navegar sozinha sem construir um barco, eu recebi um e-mail, logo no começo da primeira quarentena na França, de um cara que me seguia no YouTube, que eu não conhecia, mas que aparentemente era professor de engenharia naval na Noruega, e que tinha feito USP também. Ele se ofereceu para me emprestar um barco”, conta. A princípio, Tamara agradeceu e gentilmente recusou a oferta do hoje grande amigo Henrique. Algum tempo depois, mudou de ideia: “Eu nunca imaginei que um dia eu ia aceitar o convite. Que eu iria para lá, e que esse cara transformaria a minha vida completamente. Mas quando todo o meu contexto mudou, eu mudei de ideia”, relembra Tamara.
“Eu estava perto do meu período de férias, com uma passagem comprada para o Brasil, para passar um tempo com a minha família. Eu estava com muita saudade, muito ansiosa por esse momento. Na época, eu também tinha um namorado, com quem eu morava e velejava sempre. Com a chegada da pandemia, o voo para o Brasil foi cancelado e o meu relacionamento chegou ao fim por conta da intensidade da quarentena. Eu fiquei sem ter onde morar, sem ter como ir ao Brasil, com uma mala na mão e o sonho de navegar sozinha na cabeça. Me pareceu que fazia sentido ir para a Noruega. Eu fui para lá de barco, aprendendo no caminho”, relata Tamara sobre o período.
Quando finalmente encontrou Henrique, a velejadora foi surpreendida por uma mudança de planos: “Ele me disse que não ia mais me emprestar o barco e que ao invés disso iria me ajudar a comprar o meu. Aí eu falei: ‘Henrique, eu sou uma estudante estrangeira, não tenho nem estágio, nem dinheiro para te pagar’. Ele me disse para não me preocupar e pagar quando eu pudesse. Foi maravilhoso. Procuramos e encontramos o barco que tinha o tamanho certo, com uma disposição interna que em solitário ia ser muito prático de navegar porque tudo estava concentrado no meio. Ele também tinha alguns equipamentos que para mim seriam muito importantes, e o antigo dono era muito simpático. Eu acho que isso é muito importante, porque quando a gente compra um objeto de alguém, esse objeto vem carregado de histórias. E se a pessoa está disposta a contar essas histórias e contar os segredos e os problemas, a gente ganha mais tempo e dinheiro e corre menos riscos”.
Com a ajuda de Henrique, Tamara preparou a embarcação, que havia sido danificada por um incêndio, por cerca de um mês, antes de dar início à sua primeira viagem sozinha. Em agosto de 2020, a jovem finalmente partiu da Noruega rumo à França a bordo de seu novo barco, realizando assim o seu sonho de infância. Cerca de um mês depois, aportou na França no fim de setembro.
“Eu parti morrendo de medo, eu tinha muito medo de tudo, e tenho até hoje quando eu navego. Mas a gente não tem muita escolha, temos que seguir, porque às vezes dá mais trabalho e é mais perigoso voltar atrás do que só continuar. O perigo do marinheiro é a terra, são as pedras que a gente encontra, é a costa onde tem mais barcos de pesca, mais navios, onde tem as correntes que se aceleram o tempo todo, onde tem as luzes que confundem, onde tem os bancos de areia. Então se a gente continuar navegando está tudo bem”, explica ela.
De sua primeira experiência sozinha no mar, Tamara guarda boas lembranças e a conquista da certeza de que é de fato capaz: “Foi como quebrar uma barreira invisível! Eu tinha criado toda uma ideia sobre como seria, e no fim não foi nada revolucionário. A revolução é justamente vencer a fronteira. Navegar sozinha foi assim, eu acho que me transformou muito no sentido de que eu descobri que eu era capaz”.
“No mar, o nosso sucesso é simplesmente completar a viagem. Não depende da aprovação de alguém, não depende do julgamento, não depende de ter quem goste da gente, ou não. A gente vê isso desenhado numa carta, um traço que a gente faz. Isso é muito poderoso. Posso até duvidar, mas está desenhado, eu fiz de fato o trajeto. E dentro do barco ninguém mais me ajudou. É transformador”, diz, realizada.
Há muitas maneiras de se pensar o movimento, mas o primeiro movimento que acontece mesmo que a gente não queira é o tempo
“Eu gosto de escrever e acho que é muito importante, porque foi graças aos escritos que eu pude sonhar com isso. Eu sinto que eu tenho uma eterna dívida com as histórias que eu li e sigo em uma eterna busca por criar histórias que motivem as pessoas a se movimentarem. A navegação é ainda o único meio de transporte com o qual a gente pode dar uma volta ao mundo sem parar em nenhum lugar, em solitário. Eu sempre senti que navegar sozinha era a única maneira que eu teria de descobrir se eu era capaz de ocupar esse espaço com o qual eu sonhei quando pequena. E navegando sozinha eu me conheci melhor. Quero inspirar as pessoas a fazerem o mesmo”, conta ela.
Viver a vida em movimento, inclusive, é algo que Tamara acredita ser fundamental e inevitável, mesmo para quem não se arrisca a fazê-lo: “Há muitas maneiras de se pensar o movimento, mas o primeiro movimento que acontece mesmo que a gente não queira é o tempo. O tempo vai passar, e ele passa sempre. Então, quanto mais a gente puder tomar as rédeas do movimento a qual estamos submetidos de qualquer maneira, mas a gente pode caminhar na direção que a gente escolhe. O movimento nos dá um poder de desenvolvimento que vem do fato de a gente estar perpetuamente vendo os mesmos lugares de novos pontos de vista. A gente se dá conta da dimensão do nosso corpo, de nossas competências, de nossas capacidades físicas. Quando estamos em movimento, podemos cruzar com nós mesmos em algumas esquinas e nos enxergarmos de outros pontos de vista”, finaliza.