Seja para treinar rugby profissionalmente ou apenas jogar queimada aos finais de semana, as iniciativas criam rede de apoio e incentivam a comunidade a se manter em movimento.
Procurar um lugar seguro para praticar esporte, segundo o advogado Filipe Marquezin, 32, foi um desafio. Ele faz parte da comunidade LGBTQIA+ e relatou ao Moveh que não encontrou um lugar em que se sentisse confortável para jogar bola. Por isso, em conjunto com um amigo, criou o próprio time. Já o designer gráfico Hudson Francley, 32, queria manter o corpo em movimento, ocupar espaços públicos e se divertir. A saída foi criar um grupo para jogar queimada no Largo da Batata. O sucesso foi grande e a “Gaymada” se tornou uma verdadeira rede de apoio à comunidade. Quando o assunto é rugby, por sua vez, o “Tamanduás Bandeira” ganha destaque. Alan Alves, 34, é um dos idealizadores do projeto, que realizou o primeiro amistoso LGBTQIA+ internacional no Brasil e não esconde o orgulho em relação ao crescimento do time.
O Moveh conversou com os três organizadores sobre as respectivas iniciativas. Seja para manter o corpo em movimento ou para criar uma rede de apoio para a comunidade LGBTQIA+, os projetos são uma verdadeira aula sobre a ocupação de espaços públicos, visibilidade e diversidade.
UNICORNS
Em busca de um lugar seguro onde pudesse jogar futebol, o advogado Filipe Marquezin, 35, decidiu que criaria o próprio time. Foi aí que, em meados de 2015, ele e o amigo Bruno Host criaram o “Unicorns”, um time de futebol exclusivo para a comunidade LGBTQIA+. “Eu e Bruno já éramos amigos e amamos futebol. Buscamos lugares onde gays eram aceitos. Como não achamos, criamos o time”, conta o advogado. Sete anos depois, o Unicorns já é considerado um grupo poliesportivo e conta com cinco esportes em sua grade. Entre eles, estão futebol, vôlei, funcional, corrida e esgrima. Com diferentes modalidades em cada um dos esportes – como Avançado, Escolinha e Recreativo – o grupo já atinge cerca de 110 alunos e conta com uma equipe técnica para cada esporte.
Questionado sobre o alcance do time, Marquezin afirma que o Unicorns superou todas as suas expectativas iniciais. “O time virou um projeto e uma bandeira de resistência. Hoje somos poliesportivos, culturais e sociais”, comenta o advogado. “O esporte é um meio de transformação. Temos incontáveis casos de amizades e namoros que surgiram em nossos encontros. Quebra-se o estereótipo de que os gays só se encontram em balada”, completa. Em paralelo aos resultados do time, entretanto, Felipe Marquezin não esconde que a organização de tantos projetos requer muita organização. Segundo ele, inclusive, isso é um dos maiores diferenciais do Unicorns: “Tocamos o time com profissionalismo. Aqui, somos quase uma empresa que possui suas modalidades, cada uma administrada por uma pessoa que entende daquilo”.
Os dias e horários de treinos variam a cada modalidade, mas acontecem em centros de treinamento ou no Parque Ibirapuera. Os horários também variam de acordo com o nível (intermediário, escolinha ou recreação) e as inscrições podem ser feitas através do site do time. Todos os alunos pagam uma mensalidade que varia entre 80 e 250 reais. O valor custeia os custos da equipe técnica, das quadras e dos materiais usados nos treinos. Segundo Marquezin, o custo, inclusive, é uma dificuldade que o tenta reverter. “Gostaríamos de alcançar mais pessoas, mas muitos não possuem condições”, explica o idealizador. “Por isso, buscamos apoio de empresas – e tomamos muitos ‘não’”, comenta.
GAYMADA
Ocupar espaços públicos, criar uma rede de apoio e manter o corpo em movimento. Tudo isso está por trás da iniciativa da Gaymada, que em essência reúne pessoas para jogar queimada no Largo do Arouche, na região central de São Paulo. Criado em 2016 pelo jornalista Lucas Galdino, a ideia inicial do projeto era reunir – através de um grupo do Facebook – pessoas que quisessem praticar o esporte. Cinco anos depois, a Gaymada já conta com novos organizadores, eventos mensais e até parcerias com grandes empresas. Hudson Francley, um dos atuais administradores da Gaymada, afirma que, muito além da prática esportiva, a Gaymada surgiu como uma forma de resistência. “O intuito também é mostrar que nós, da comunidade LGBTQIA+, não existimos só à noite, em baladas ou nos bares, como normalmente acham que a gente está”, conta. “O projeto surgiu como uma iniciativa de ocupar o espaço público de dia, o que é nosso por direito”, completa.
Dentro e fora das quadras, os participantes da Gaymada criam um espaço seguro para que todos se sintam confortáveis. Segundo o organizador, o projeto ainda se comporta como uma verdadeira rede de apoio à comunidade LGBTQIA+: “existe toda essa questão do acolhimento, de pessoas que precisam de ajuda e ainda não se reconhecem. Então, nós estamos lá para se divertir e jogar, mas também para dar apoio para essa galera que está precisando de um amigo para desabafar”. Seja pela rede de apoio ou pelo esporte, a Gaymada recebe cada vez mais gente nas quadras do Arouche. Segundo Francley, o crescimento é visível para quem acompanha a iniciativa desde sempre. “No começo, iam sempre as mesmas pessoas. Ou, quando ia alguém novo, era porque um amigo tinha indicado. Hoje, não. A gente nota que cresceu e que tem mais procura”, afirma. Para manter a comunidade sempre ativa, o organizador também conta que a recepção dos mais novos é quase um ritual na Gaymada “Sempre temos a política de recepcionar quem está chegando, perguntar se quer jogar. E explicamos, sempre, que não precisa pagar, que é aberto a todes e que pode chamar quem quiser”. Aos novatos, a missão é escolher os times. E isso, segundo Francley, é uma forma de manter o esporte sempre saudável, sem grandes competições e, acima de tudo, divertido.
TAMANDUÁS
A democratização do esporte é apenas um entre os tantos objetivos do “Tamanduás Bandeira”, o primeiro time inclusivo LGBTQIA+ do Brasil. No início do projeto, a ideia era criar um espaço seguro onde o Rugby fosse acessível para todos. Cinco anos depois da criação, o Tamanduás já coleciona incontáveis amistosos, alguns campeonatos, o sonho de se inscrever no Campeonato Paulista de Rugby e a realização do primeiro campeonato internacional LGBTQIA+ do esporte. Segundo o analista de web Alan Alves, 34, um dos idealizadores do time, o projeto surgiu da vontade de ensinar e aprender o esporte de uma forma democrática, além de criar um espaço onde as pessoas pudessem se sentir seguras e confortáveis de ser quem elas são.
“A ideia inicial do projeto nem era uma formação de time. Nossa ideia era criar treinos livres para que as pessoas conhecessem o esporte e que a gente trocasse experiências” conta Alves. “No início, a gente nem tinha técnico, era livre. Pessoas que já tinham treinado antes passavam um pouco da vivência, mas a maioria não tinha”, completa. Hoje, a realidade é diferente: o time conta com o apoio da técnica Camila Lacerda, também jogadora de rugby. Com o time evoluindo, o Tamanduás – que à época não carregava o apelido – precisou achar um nome oficial. A escolha foi fácil, segundo Alves: “quando a gente começou a entender que seríamos um time, pesquisamos entre as pessoas e surgiram nomes excelentes e nomes muito ruins. O objetivo central era achar algum animal da fauna brasileira porque é uma tradição aqui no Brasil. Quando trouxeram a ideia do Tamanduá Bandeira a gente gostou pelo trocadilho, já que nós levantamos a bandeira do orgulho”, conta.
Com nome, técnica, treinos regulares e muita vontade de aprender, o Tamanduás ganhou cada vez mais as características de um time. Dentro e fora de quadra, a relação entre os jogadores mudou e novas relações foram criadas. “No campo, você coloca o seu corpo para defender outra pessoa, então você cria uma ligação totalmente diferente. O rugby é um espaço de construção de relações sociais, de conhecer pessoas de outras realidades e entender um motivo comum”, explica o idealizador. Na prática, essas relações também geram resultados positivos ao time. Segundo Alves, a evolução dentro de quadra é visível e digna de se orgulhar: “às vezes, quando a gente sai de um jogo, a gente olha para trás e fala ‘nossa, cara, olha esse placar. Olha o que a gente fez hoje’. É muito incrível. Mostra nossa evolução, nosso amadurecimento e nosso crescimento real, dentro e fora de quadra”.
Com treinos às segundas, quintas e sábados no Parque Ibirapuera, zona sul de São Paulo, o Tamanduás mobiliza cerca de 30 pessoas por encontro. A escolha do lugar, segundo Alves, faz parte da filosofia do time: “[o Parque Ibirapuera] não é um espaço próprio para a prática de rugby. Mas, como temos esse propósito de inclusão independente de condição financeira, procuramos um espaço de livre e fácil acesso, para que isso não seja um impeditivo”. Os treinos, que são em dias da semana acontecem das 20h às 21h30 e aos sábados das 12h às 14h30 e são abertos ao público.