Um mar físico e um mar de dentro. A sensação de colocar tudo aquilo que não cabia dentro de si para fora através de uma arte que transborda. O Moveh convidou a artista Estela Miazzi para escrever sobre sua forma de enxergar a arte, o mar e as baleias com outros olhos.
Por: Estela Miazzi
A minha relação com as artes começou quando tinha dois anos. Minha mãe me levou para uma escolinha pela primeira vez e eu entrei num galpão imenso, cheio de atividade. No final daquele espaço tinha um cavalete. Era o primeiro dia e minha mãe estava com aquele aperto no coração por causa da separação. Acho importante, aqui, falar que a minha mãe também é de humanas e entende o mundo através da linguagem. Ela é uma pessoa super culta e apresentou para a primeira filha dela livros e cadernos, mas nunca pincel e tinta. Aquele não era do universo dela. Mas, quando a gente chegou na escolinha, eu soltei a mão dela e atravessei o galpão inteiro, parei na frente de um um cavalete que tinha uma tela, abri as tintas, peguei pincel e comecei a pintar como se você fosse a coisa mais natural do mundo. Era como se eu já tivesse feito aquilo na minha vida.
A partir daquele dia, minha mãe entendeu que eu era uma criança diferente, que tinha aptidão para criar e, principalmente, para as artes. Ela procurou o melhor tipo de escola e o melhor tipo de ambiente para eu crescer sendo incentivada a ser quem eu sou, então eu fui para uma escola com a pedagogia Waldorf. Assim como o Moveh, eles entendem o mundo através de três pilares: o corpo, a mente e o espírito. Então, eu cresci num ambiente sendo respeitada por quem eu sou. Tanto meu corpo, meu espírito, minha alma, minhas facilidades e minhas dificuldades. Anos depois, na faculdade, eu tentei me descobrir. Queria entender minha poética e minha arte, e com o tempo percebi que era “o outro como reflexo de quem eu sou”. É meio confuso, mas eu explico: quando eu andava de ônibus, ficava me perguntando se a pessoa do meu lado também ficava pensando se tinha desligado o fogão. Se ela estava esperando uma ligação ou estava ansiosa. Foi aí que eu entendi, então, que o outro era um objeto de curiosidade. Ao mesmo tempo, o outro era o meu ponto de partida e, também, ponto de chegada.
E por que o mar?
A
Depois que eu me formei na faculdade, eu tinha prometido que sairia do caderno [de artes] porque aquele era um espaço muito seguro e protegido. Mas, naquele ano, eu entrei em depressão. E, no meio desse caos, junto ao encerramento da vida acadêmica, eu não conseguia mais traduzir o mundo através do desenho. Ele se tornou insuficiente porque não conseguia traduzir o abismo que eu sentia. Na época, eu li um livro chamado “Barba Ensopada de Sangue”, do escritor Daniel Galera. É um livro muito bom, passível de ser devorado. E eu lembro de parar um momento e ter sentido uma sensação de alguma coisa me dizendo que eu precisava voltar e reler um parágrafo. Eu voltei e achei um trecho em que ele fala sobre baleias.
Imagina uma baleia ali no rasinho, quase na praia, o que será aquela sente? Pode ser que veja a fronteira de um outro mundo remoto e mortífero, tão ameaçador quanto o mar é pra gente. Mas, pode ser que seja como voltar para casa, como voltar para o útero da mãe: uma coisa tentadora.
Na página duzentos cinquenta, Galera escreve o seguinte: “Isso aqui foi uma carnificina por um século e meio. E, mesmo assim, elas voltam e recebem as pessoas. Sem instinto de defesa, sem história, sem rancor nenhum. Acho incrível como elas chegam pertinho da praia para ter os filhotes. Ano passado, tinha algumas quase na arrebentação ali em Garopaba, bem no rasinho. Os bebês precisam aprender a respirar fora d’água, porque a coisa mais maluca é que isso não é um peixe, é um mamífero. Quando elas chegam perto assim e respiram, eu sinto o pulmão delas e me dá um calafrio. São animais da terra que voltaram para o mar. Já viu como é o esqueleto de uma baleia? Elas têm ossos como patas nas nadadeiras, mãos e dedos. Fico pensando se esse hábito de migrar pra cá e ficar na beira da praia não tenha a ver com uma nostalgia do passado, da ancestralidade terrestre. Imagina uma baleia ali no rasinho, quase na praia, o que será aquela sente? Pode ser que veja a fronteira de um outro mundo remoto e mortífero, tão ameaçador quanto o mar é pra gente. Mas, pode ser que seja como voltar para casa, como voltar para o útero da mãe: uma coisa tentadora. Vai ver que por isso que elas encaram, sem motivo aparente. Porque o mar não tem limites, o terror do oceano tá nisso: é útero ao contrário. Acho que as baleias vivem nesse terror”. E aí eu comecei a desenhar e fiz a minha primeira baleia em aquarela.
Quando li esse texto do Daniel Galera, eu me identifiquei. Não é um texto lindo, ao contrário: é um texto cheio de contradições, denso, compara gente com baleia e morte. Foi nessa época, no caderno que eu usava, que eu escrevi, pela primeira vez, “o mar em mim”. Foi ali que eu comecei a explorar aquarela como forma de transbordar. A aquarela, ali, me proporcionou e permitiu que eu traduzisse o mundo de dentro. E por que o mar? Acho que, em partes, tem a ver com o fato de que nós, paulistas, temos um lugar de quase desespero em relação ao horizonte. Mas não é só sobre isso. Eu acho que é muito mais sobre o lugar das emoções.
Nós estamos unidos através dele: o mar de dentro. Assim como o mar físico nos une como povos e continentes, o mar de dentro nos une no lugar de mais humano que a gente tem.
Para mim, existem dois mares: o físico e de dentro. O mar físico é aquele que nos une como povos e continentes. E tem aquele que, às vezes, quando você olha uma pessoa, você pode não falar a mesma língua do que ela, você pode não ter mesmo gênero, a mesma idade, mas você consegue se identificar no outro através de um olhar, de um sorriso, de um choro. No fim, a gente consegue se identificar através daquilo que nos faz humanos, do nosso “quê” de humanidade. E eu acredito que nós estamos unidos através dele: o mar de dentro. Assim como o mar físico nos une como povos e continentes, o mar de dentro nos une nesse lugar de mais humano que a gente tem. E ele é lindo, mas também tem tempestades, é desconhecido e dá medo. Cada mar de dentro é gelado, quente, tem seus próprios movimentos e intensidades. Tem cores diferentes, tudo. A gente tem isso dentro da gente.
Em relação ao meu trabalho, sempre falo: nenhuma baleia que eu faça tem uma espécie catalogada. Elas não existem. E eu acho que isso é uma das coisas que me difere das outras pessoas que fazem desenhos de baleias em aquarela: a baleia que eu faço é inventada. Elas são as baleias que cabem dentro de mim. O meu trabalho, no fim, é só um jeito que eu entendi de traduzir tudo isso que eu sinto e que eu acredito, que vive no meu mar de dentro.